08/12/10

Poetry





Poetry”, Lee Chang-dong, outra boa surpresa depois de “Des Hommes et des Dieux”, Xavier Beauvois. Estiveram os dois em competição em Cannes e, estranhamente, começo a perceber porque é que a Palma de Ouro foi atribuída ainda a um outro terceiro – o tão estranho “Uncle Boonmee, recalls his many past lives”, Apichatpong Weerasethakul.

Poetry” é a comovente história de uma avó que se interessa por poesia ao mesmo tempo que descobre que tem Alzheimer e que o neto de 16 anos (de quem cuida sozinha) poderá estar envolvido numa coisa muito má. A personagem - estranha personagem que nunca se chega a descobrir (ela e nós) - a par da descoberta da poesia descobre também a imoralidade do que a rodeia e de que nem tudo são como as flores que como ela diz: "amo-as e fico feliz só por vê-las". Nem tudo é assim, ou quase nada é assim, ou é mesmo muito difícil que as coisas sejam assim. Como diz o professor de poesia no filme: “não é difícil escrever um poema; difícil é ter coração para o escrever”. O difícil sempre em tudo é não sermos verdadeiros e deixarmos que as coisas piores se sobreponham às melhores. É uma evidência que estamos sempre a esquecer. Este é um filme que procura descobertas mas onde se descobre muito pouco ou quase nada. Este é um filme muito longo e às vezes demasiado estático e previsível. Mesmo assim, é um longo e bonito poema.


“Esta é uma época em que a poesia está a morrer. Alguns lamentam essa perda, outros dizem que ela merece morrer. Ainda assim, as pessoas continuam a ler e escrever poesia. E uma pergunta que faço como cineasta: o que significa fazer filmes num tempo em que os filmes estão a morrer?”
Lee Chang-dong

28/11/10

Cidade Baixa

Pois, e porque há sempre coisas a descobrir, mais um filme e um muito interessante filme e já de 2005. O cinema é inesgotável, os temas a explorar nunca acabam, os interesses de cada um poderão ser os mais divergentes. Aqui, no filme, uma questão: será que pode existir paixão, desejo, amor de uma por duas pessoas ao mesmo tempo e dessas duas pela primeira? A resposta não existe mas a perspectiva deste filme “Cidade Baixa” é muito interessante. "Cidade Baixa" é um filme forte que revela a energia e o realismo do cinema brasileiro, com excelentes interpretações - Alice Braga, Lázaro Ramos, Wagner Moura – e com muitas cenas filmadas sem quaisquer preconceitos, espírito muito aberto, a um ritmo muito acelerado. Ainda, claro, Salvador da Bahia. Local: Cidade Baixa.

“Cidade Baixa se passa em um universo em que as pessoas não vivem “discutindo as relações”, elas trepam quando têm desejo e saem na porrada quando vêem que seu desejo foi contrariado.”
Sérgio Machado, 2005

14/11/10

Des Hommes et des Dieux

Finalmente, depois do "O Laço Branco", um filme que mexeu com todas as minhas mais profundas emoções e comoções e perturbações e montões de pões (que são todas aquelas coisas que põem nas nossas pessoas coisas muito fortes, acabei de adicionar o significado de uma palavra à língua). Um filme libertador (em todos os sentidos), com um belo título – “Dos Homens e dos Deuses” - que busca mais as emoções humanas, as dos Homens, do que as de Deus, sem as explicações divinas explícitas, embora O Deus esteja sempre presente e pareçam ser sempre explicitas essas explicações divinas. Um filme que emociona católicos, islâmicos, ateus, ou seja lá quem for, em todos aqueles em que acreditem em que só há um acreditar: o amor em todas as suas dimensões. Um filme que nos enche o peito. E enche-nos o peito porque há Homens que fazem coisas porque acreditam nelas, sem pedir nada em troca, sem procura do heroísmo, apenas na busca de um bem estar interior pleno. Lambert Wilson (Frère Christian), Michael Lonsdale (Frère Luc), Olivier Rabourdin (Frère Christophe), Philippe Laudenbach (Frère Célestin), Jacques Herlin (Frère Amédée), Loic Pichon (Frère Jean-Pierre ), Xavier Maly (Frère Michel ), Jean-Marie Frin (Frère Paul) enchem-nos (é sempre essa a palavra) o coração. Xavier Beauvois, o realizador, procurou a essência da história sem se preocupar nos pormenores dos factos mas nos esclarecimentos dos pensamentos. Um homem que nos transporta às nossas entranhas merece ser observado com muita atenção. E é este o caso. Este filme foi o Grande Prémio do Júri de Cannes 2010, é o filme que representará a França na candidatura ao "Oscar dos filmes estrangeiros" e é um filme que merece especialíssima atenção. Como disse a Rosário Coimbra no final do filme há aqui uma das mais belas cenas que eu (e ela) já vi (vimos) no cinema em toda a minha (nossa) vida. Os monges, à volta da mesa, filmados um a um, com uma expressão que oscila da extrema felicidade, segue para a angústia e termina com uma expressão de profunda tristeza e lágrimas em todos os olhos daqueles monges. E que tristíssimas lágrimas! E que magnificas expressões! O filme parte de uma história verídica. Mas, como no filme, não me apetece muito dar-lhe importância; afinal todas estas histórias de homens anónimos caem no esquecimento e o mais valioso é sempre perceber – e seja lá quem for – que existem pessoas grandiosas. “Entre a Terra e o Céu”. Ou só mesmo aqui na Terra.

07/11/10

La Nana

"A Criada", em português, é um termo usado ainda neste século, aliás, e se calhar, mais do que nunca. E este filme é sobretudo o estudo do comportamento de quem cuida dos outros antes de cuidar de si próprio. E de alguém que faz disso a sua vida inteira. E isso pode ter as mais diversas consequências e nunca as mais construtivas para as partes envolvidas. Tudo isto está expresso no rosto da criada (Catalina Saavedra). Uma tristeza profunda, um olhar impessoal, parado e vazio, numa permanência numa casa há mais de vintes anos, numa ausência de sentimentos por si e, ao fim ao cabo, também para os outros apesar de viver para eles. E numa fúria contida capaz de explodir a qualquer momento. Vale a pena dar uma espreitadela neste filme e na câmara que vai observando todos os movimentos e emoções de "La Nana".

10/10/10

"Antes um final angustiado do que uma vida de angústia”. Foi Ahmad que, ao dizer isto, involuntariamente revelou a Elly o exacto sentido do seu futuro, para ela sem alternativas num “establishment” que secundariza e estigmatiza as mulheres. Em termos lineares, “Darbareye Elly” (em português dará qualquer coisa como “À procura de Elly”) é a história de um grupo de amigos que passa um fim de semana numa casa junto ao mar. Todos eles e todos os seus hábitos são banais e em cada pormenor revelam as dimensões afectivas, sociais e humanistas típicas de “gente a sério” : não fossem os “hijab” das mulheres e o aspecto decrépito da casa de férias e poderíamos estar a contemplar um quadro banal de alguns europeus em férias. E mais alguns detalhes, revelados subtilmente ao longo do filme, como a agressão de Amir à sua mulher Sapideh, em estado de desespero por não saber o que ela sabe e quanto sabe sobre o desaparecimento de Elly: o momento em que os modelos morais islâmicos falam mais alto do que a razão através dos estados de alma. O guião é magnífico: o mistério revela-se a conta-gotas e tanto nos confunde nas pistas como nos põe a adivinhar sobre o que de facto aconteceu, até que percebemos que só uma hipótese é possível: a liberdade. Tudo relevado sem facilidades e sem maniqueísmos. Para coroar, o filme tem uma outra vantagem apreciável: é um excelente “espanta-preconceitos” para quem olha o Irão do “alto da Europa. “Tudo isto estava escrito. Ninguém tem culpa.”. Urso de Prata no Festival de Berlim. Um must-see.

08/10/10

Lola

Depois de "Kinatay" e do espectáculo de horror a que ali assisti, ouvi dizer que "Lola", de Brillante Mendoza, era uma espécie de redenção do cineasta ao seu filme anterior, com os filipinos e com o público em geral. Pois para também a mim me redimir ("Kinatay" é mesmo terrível e eu gostei) vi ontem "Lola”. Não há sangue, não há esventramento, não há um espectáculo sanguinário como no anterior. Mas há ainda maior tristeza, muita água (parece que nos vamos afogar), sofrimentos e desilusões incomensuráveis. Não me senti redimido. Não me senti aliviado. Senti uma profunda angustia. Não sei se algum dia quero ir a Manila. Acho mesmo que não (curioso, parece que já conheço aquelas ruas …). De qualquer forma, percebi que Brillante Mendoza é de uma sensibilidade superior. E isso é sempre tão raro.

06/10/10

Kinatay

“Kinatay” significa carnificina em filipino e será um esventramento literal e uma lição das trevas, culminando na violação colectiva e no massacre. É este o tema do filme com esse nome, “Kinatay, Brillante Mendoza, 2009, acabado de sair em DVD. Preparem-se, é um filme para maiores de dezoito anos e uns dezoito anos muito bem constituídos, organizados e estruturados. Caso contrário, é o caos, é caso para não aguentar o “murro no estômago”.
Podia começar por dizer-se, como se lê algures no filme, que uma vez perdida a integridade é para sempre. Acredito que nem sempre, mas só porque acredito na redenção. Acredito que poderá nunca acontecer pois há lugares onde isso poderá não ser possível. E neste lugar - onde acontecem estas coisas - parece que isso não existe.
A personagem principal, Peping, vinte anos, acabado de casar, com um filho de sete meses, aceita uma oferta de trabalho para ganhar algum dinheiro no próprio dia do seu casamento, na madrugada que se segue a esse dia, e vai assistir a uma verdadeira tortura, a uma matança, a um esquartejamento, e vai mostra-nos tudo isso a nós, espectadores, que o vamos acompanhar - só vemos aquilo que os olhos dele vêem.
Estamos em Manila, num nível de extrema pobreza, onde impera o caos, o lixo, o quotidiano filipino é-nos logo mostrado como nada de muito bonito mas onde, no inicio parece, se conseguirá viver com uma certa tranquilidade e harmonia. Um casal muito jovem, feliz, com um filho de sete meses, vai casar e tudo nos parece bem. Logo depois, entramos na noite de Manila, com Peping e um grupo de policias e passamos a assistir ao verdadeiro horror. Ao longo da noite, a missão em que Peping se vê envolvido consiste em dar uma grande lição a uma prostituta. E que lição! Ela vai ser espancada, violada, assassinada com facas, esventrada, mutilada e os seus pedaços vão ser espalhados pela cidade no meio do lixo, do caos, sem que ninguém se espante muito com esse facto (alguém diz, impávido e sereno, quando descobre a cabeça da mulher: “não se percebe, nos últimos tempos só encontramos pedaços de corpos pela cidade”).
E aqui não há integridade, não há redenção, há um desfilar de actos bárbaros, sem dó nem piedade, uma frieza implacável. A excepção é a personagem principal, Peping, que não recusa a tal oferta de trabalho para ganhar algum dinheiro. Parece que ele, também ele, não se irá salvar. Ele próprio, irá ser como o grupo com quem passou aquela noite. Para ele a salvação não vai chegar, parece. Ou a chegar será de acordo com aquelas regras.
Tudo é irremediavelmente mau quando se vê este filme. É como alguém nos dissesse (neste caso, o realizador) : o mundo é mau, o mundo é muito mau, e por ser tão mau olhem para isto, vejam bem isto! Será que foi isto que quis dizer Brillante Mendoza, com este “Kinatay”, melhor realizador em Cannes 2009 ? A mim parece-me que sim. Só não sei se isso é mau ou se às vezes é bom ver que existem coisas realmente más.

“Quero que os espectadores sintam o horror dentro da cabeça do meu personagem. Quero que o sigam de perto, que observem e pensem, e se sintam realmente perturbados.”
Brillante Mendoza

05/08/10

"J´ai tué ma mère"

Depois de "Afterschool" - um filme realizado por um jovem pequeno adulto americano brasileiro de nome António Campos - outra boa surpresa: "J´ai tué ma mère", Xavier Dolan. Em vez de questionar sobre este filme será melhor vasculhar sobre o que é que vem a seguir a este, saber quem é este rapaz, estar atento a Xavier Dolan. Para já, e assim de repente, escreveu este filme com 17 anos, esteve o ano passado em Cannes com este filme na secção Un Certain Regard, já fez outro filme chamado "Les Amours Imaginaires" e recebeu vários prémios pelo primeiro. Eu gostei. Eu vou querer ver e ouvir o que tem para dizer daqui para adiante Xavier Dolan. Gosto de pessoas inteligentes. Tudo menos o atavismo que existe por aí. Diz ele que ainda não tem muito para dizer porque viveu pouco. Digo eu que já vi outros viverem alguma coisa e que não sabem dizer nada.

25/07/10

Wild Horses !

A propósito da extensão do nosso parco conhecimento, da “obrigatoriedade” inexprimível de querer conhecer muito, ou, quem sabe o muito que para outros significa nada, ou ainda, o que nós aprendemos pouco ou nada é para os outros só para nós, o que já por si importa pois tornamo-nos maiores, as coisas estão longe de ser... todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos apresentam. A maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos susceptíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte: seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efémera. Wild Horses!

Adaptação muito livre de Rainer Maria Rilke

17/07/10

Afterschool

Inquietante não saber o que é que as crianças fazem nas nossas costas. Inquietante não saber o que é que andam a fazer nas escolas às crianças. Quem são os professores? Que poder têm no que lhes transmitem? Quão distraídos ou ocupados andaremos nós? Estas crianças são os adolescentes, os pré-adolescentes, ou os não adultos. Este filme foi escrito e realizado por um miúdo americano com nome português: Antonio Campos. Afinal, o que é a realidade para estas crianças? O que é que fazem na Internet, no Youtube, no mundo virtual? O que é neste contexto uma relação verdadeira? O que é, sendo assim, a verdadeira experiência das coisas? Como é que desta forma descobrem a sexualidade? Como li algures, o que se anda a fazer aos miúdos? Brutal!

O primeiro filme de Antonio Campos é sobre a vida escolar, a descoberta do sexo, as drogas e a Internet. A história é sobre um estudante de uma das melhores escolas dos EUA que, acidentalmente, filma a morte por overdose de duas colegas suas. Como forma de atenuar o luto colectivo, a gravação torna-se num projecto audiovisual da direcção da escola. No entanto, o efeito é o oposto e acaba por criar um clima de paranóia geral entre alunos e professores.

11/07/10

“Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives”

Ontem, no Curtas Vila do Conde: “Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives” (Tio Boonmee, aquele que se lembra de suas vidas passadas). O título é muito complicado. O nome do realizador tailandês - Apichatpong Weerasethakul - impossível de memorizar ou verbalizar. No filme, Palma de Ouro Cannes 2010, dedicado pelo realizador aos espiritos e aos fantasmas do seu país, deambulam os fantasmas e os espiritos da Tailândia, o espírito de uma mulher, uns seres bizarros com muitos pêlos e olhos encarnados (os macacos-fantasmas), uma cena de sexo entre uma princesa e um bagre falante num idilico lago algures em nenhures, uma gruta útero com as personagens no interior à espera da morte no lugar onde nasceram e um final completamente nonsense. Eu não percebi o final: “eu fico aqui mas vou ali e já volto”. Decerto por não ser tailandês. Decerto pelos fantamas de Portugal vaguearem numa outra dimensão. E eu a pensar que fazíamos parte de um todo, do mesmo planeta. A Tailândia estará noutra dimensão, pronto, aceito. Curioso foi perceber a cara das pessoas (olhei especiamente para a do Fernando Lopes) completamente baralhados. Certamente a pensar: e agora “vou dizer que foi uma obra-prima ou uma grande merda”?



13/06/10

01/05/10

...

Nostalgia, sem melancolia, lembrança, recordação, sem saudosismo, juventude, adolescência aquém, quando tudo ainda era possível e quando tudo o que queríamos era tão longínquo que sabê-lo hoje é como voltar atrás e querer tudo à mesma, da mesma forma ou de outra, de qualquer forma o tempo não exaure a nossa existência, de sentido, de vontade, de continuar sempre com o mesmo espírito. O do querer. Liberdade é isso.

21/04/10

Respect!

Pensar nos absurdos de raciocínio que se fazem por não percebermos o que vai em mentes alheias é, simultaneamente, delicioso, estimulante, sedutor, sempre altamente narcísico. Nunca saberemos se é o virtual o real, se é o real o virtual, quais os espaços em que nos movemos. Só descobrimos é que como na vida real só pro...gridem os destemidos. Como em Platão: “A realidade não é o que alguns apregoam que ela é” ; Como a Matrix: "se o contrário de real é irreal, então qual é o contrário de virtual? ". Respect !

25/03/10

...

Muita me espanta que alguma juventude dos dias que correm tenha mais interesse pelos acontecimentos presentes e passados ao invés os adultos que perseguem mais o passado e pouco interesse têm pelo presente. As referências dos jovens são as de hoje e as de ontem e as dos adultos mais voltadas para o antigamente. Aprendemos tanto com eles como eles aprendem connosco. Basta estar atento e não nos arrogarmos de mais sabedoria por já termos vivido mais anos. Mas nem todos estão direccionados para o mesmo. E o mesmo, neste caso concreto, é só a aprendizagem.

23/03/10

silêncio

Às vezes é tão doloroso ser verdadeiro, é preciso tão desmedido esforço, que o silêncio é, infinitamente, e na maior parte das ocasiões, a qualidade mais precisosa. O ruído destempera.



Joana estava tranquilamente a fazer os seus deveres rotineiros caseiros. Assim que acaba as suas tarefas, sente a sua alma tão limpa e ordenada como a sua casa. Sente uma felicidade interior tão grande que não consegue conter e, à medida que vai percorrendo e contemplando solitariamente a sua casa, o Silêncio vai-se apoderando das coisas, embelezando-as e dignificando-as. Tudo à sua volta desperta ordem, alegria e encanto e, à medida que ela admira os objectos que a rodeiam, vai absorvendo todos esses sentimentos positivos unindo-os num só: a felicidade. É esta felicidade que a liga às coisas, que faz delas uma parte de si, que constitui uma ponte entre a sua alma e a alma das coisas. Esta ligação proporciona uma relação simbiótica entre a realidade e a imaginação de Joana, em que tudo beneficia e nada é desagradável ou destruidor. Foi durante toda esta interminável tranquilidade que Joana ouviu um grito vindo da rua. Era um grito que carregava consigo uma força destruidora imensa, que erradicava tudo aquilo que se lhe metia à frente, e que procurava ultrapassar os confins do Universo. Procurava alcançar alguém. Parecia que os gritos tinham um propósito, e que este nada mais poderia ser senão o de acordar alguém, quem quer que fosse. Os gritos repetiam-se sucessivamente, cada vez mais desoladores e caóticos. O mundo perfeito em que Joana se encontrava estava a ser demolido como um castelo de cartas; todo o Silêncio que outrora pairava sobre a sua alma tinha-se desvanecido e, com ele, também a sua felicidade interior e beleza exterior. O mundo agora parecia-lhe um agregado de matéria disforme, incaracterística, completamente desprovida de beleza e ordem. A mulher cessou, finalmente, de gritar. Um homem que se encontrava com ela pediu-lhe para se irem embora, e esta, que tinha acalmado, acabou por consentir.

Sophia de Mello Breyner Andresen

16/03/10

"a realidade não é o que alguns apregoam que ela é"

Facebook é um website de relacionamento social, define a Wikipédia.

Facebook é um website de conhecimento, de interacção e de, mais uma vez, nesta questão de redes sociais, um website narcísico.

Facebook é uma descoberta da personalidade dos nossos “amigos”. O que se vai descobrindo nas entrelinhas não é pouca coisa. O que vamos mostrando vai violando a nossa privacidade, repetidamente, por palavras, por comentários, por aquilo que vamos escolhendo pôr.

Facebook é uma forma de conhecimento, as notícias vão sendo transmitidas em directo, sempre presente a informação dos assuntos que nos importam, relativos às páginas que nós escolhemos.

Facebook é muitas vezes uma forma de idolatria, qual a pessoa que escolhemos, dos nossos “amigos”, para carregarmos no like, para agradarmos a essa pessoa - a melhor forma de sentir antipatia se não corresponder à verdade. A idolatria, a veneração, seja qual for a razão subjacente, causa asco.

Facebook permite reencontrar velhos conhecidos, permite trocar opiniões, permite diversão, permite aprendizagem. Na maioria das vezes os outros acham sempre mais do que os demais preocupando-se mais com a amostra do que com a verificação.

Facebook permite descobrir pessoas interessantes, desinteressantes, vaidosas, fúteis, arrogantes, simpáticas, autoritárias, banais, tudo como no dia-a-dia mas de uma forma virtual, por isso mais livre, sem sobriedade. Por esta forma, as pessoas mostram-se mais, ocultas que estão no seu teclado, numa imagem virtual aparentemente indecifrável.

Facebook é uma forma de bisbilhotice da vida alheia, de esbulho, há os que permanecem silenciosos a vasculhar os outros, há os intrometidos, os convenientes, os inconvenientes, há de tudo, como em todas as circunstâncias. Tal qual a ninfa Eco que falava demais, a que queria sempre dar a última palavra em qualquer conversa ou discussão.

Facebook é uma forma de divertimento, uma forma de contactar os outros, de interacção, de distracção e de comunicação virtual.

Facebook é uma forma de gueto, os solitários abrem-se ao mundo, os expansivos bombeiam opiniões, os emproados ensinam os outros, os racionais planeiam as palavras, os emotivos susceptibilizam-se e muitas vezes amuam.

Facebook é o actual big brother, real ou virtual, as pessoas sabem da nossa vida, nós sabemos da vida dos outros, riem-se de nós, simpatizam connosco, gostam de nós, opinam sobre nós, e nós fazemos o mesmo com os outros e tudo rodopia à volta e volta a rodopiar e assim sucessivamente. A forma é a mesma da real, o virtual permite-nos rir sem que nos vejam, rirem-se de nós sem que nos apercebamos, respeitamos, desrespeitamos, respeitam-nos, desrespeitam-nos, em sucessivos actos narcisistas.

Facebook é muitas vezes inveja. Às vezes um sentimento de aversão, outras um sentimento egocêntrico, a soberba, o querer ser maior e melhor que todos, não podendo suportar que outrem seja melhor.

Facebook é veracidade, autenticidade. Pomos o que queremos, o que gostamos, independentemente da reacção alheia, somos nós, os outros gostam ou não, é sempre assim afinal.

Facebook não é nada, ou é tudo, ou é muito pouca coisa, ou é aquilo que queremos que seja, não é aquilo que os outros querem de nós, somos só nós, mais nada. Como a Matrix: "se o contrário de real é irreal, então qual é o contrário de virtual? "

E tudo começa pelo título, por Platão.


"O que é Matrix? Controle. A Matrix é um mundo de sonhos gerado por computador... feito para nos controlar..." (revelação feita por Morpheus a Neo)
(Andy & Larry Wachowski, The Matrix, EUA, 1999).

10/03/10

a superficialidade dos grandes espíritos

Não há nada de mais perigoso para o espírito do que a sua relação com as grandes coisas. Alguém deambula por uma floresta, sobe a um monte e vê o mundo estendido a seus pés, olha para um filho que lhe colocam pela primeira vez nos braços, ou desfruta da felicidade de assumir uma posição invejada por todos. Perguntamos: o que se passa nele em tais momentos? Ele próprio certamente pensa que são muitas coisas, profundas e importantes; mas não tem presença de espírito suficiente para, por assim dizer, as tomar à letra. O que há de admirável, diante dele e fora dele, que o encerra numa espécie de gaiola magnética, arranca os pensamentos do seu interior. O seu olhar perde-se em mil pormenores, mas ele tem a secreta sensação de ter esgotado todas as munições. Lá fora, esse momento inspirado, solar, profundo, essa grande hora, recobre o mundo com uma camada de prata galvanizada que penetra todas as folhinhas e veias; mas na outra extremidade em breve se começa a notar uma certa falta de substância interior, e nasce aí uma espécie de grande «O», redondo e vazio. Este estado é o sintoma clássico do contacto com tudo o que é eterno e grande, bem como da permanência nos píncaros da Humanidade e da Natureza. Aqueles que se comprazem na companhia das grandes coisas - e entre eles contam-se, naturalmente, as grandes almas, para as quais as pequenas coisas não existem - vêem a sua vida interior ser esvaziada e transformada numa imensa superficialidade.

Por isso, também se poderia ver nessa ligação às grandes coisas uma lei de sobrevivência da matéria espiritual, lei essa que parece ter uma validade bastante universal. Os discursos de pessoas em posições de destaque, que agem em mundos de grandeza, são em geral mais vazios de conteúdo do que os nossos. Os pensamentos demasiado próximos de objectos especialmente elevados mostram-se geralmente muito limitados sem o apoio desse privilégio. As causas que nos são mais caras - a nação, a paz, a humanidade, a virtude e outras igualmente estimáveis - arrastam consigo a mais medíocre flora intelectual. Esse seria um mundo às avessas. Mas se admitirmos que o tratamento de um tema pode ser tanto mais insignificante quanto mais significativo esse tema for, então estamos num mundo perfeitamente em ordem.


Robert Musil, in 'O Homem sem Qualidades'

06/03/10

hoje está tudo mais tranquilo ...


... até o mar, o Douro, a Natureza acalma e as nossas razões ainda !
Fotos da RC







27/02/10

my balcony today


A natureza tem destas coisas. Tão belo. Tão violento. Tão arrebatador. Fotos da RC







16/02/10

Um Amor de Perdição

Apesar das várias fragilidades, Um Amor de Perdição, Mário Barroso, 2009, é um filme supreendente, irascível e sem pudores. E eu gosto disso. Só por isso, e se não fosse por mais, valeu a pena, vale a pena, valerá a pena. Um filme onde se mostra um Simão Botelho sem medos, um adolescente que não reconhece a autoridade moral e a ética porque vive fora delas, a sua família não vive junta, vivem ao lado uns dos outros (com diz a sua irmã mais nova Rita Botelho). Trata-se de uma adaptação (muito livre) ou de uma inspiração do romance homónimo de Camilo Castelo Branco. O livro passa pelas mãos das personagens, anunciando o mesmo final trágico de Simão Botelho e de Teresa de Albuquerque de Camilo.

Nas palavras de Mário Barroso: "Simão é um adolescente quase criança, solitário, intransigente, narcisista, destrutivo e suicidário que atrai como uma aura fatal, uma luz negra, a maior parte das pessoas com quem se cruza. Mas Teresa existe, ou é apenas uma ideia, uma imagem, um reflexo? Teresa é uma aparição. Um pretexto para uma revolta amoral e violenta".

O filme, Um Amor de Perdição, embora uma adaptação (ou uma inspiração) muito livre do romance de Camilo, centra-se na personagem de Simão que tem os mesmos traços de personalidade dos do romance. As personagens do filme gravitam à sua volta, no livro também, a única que o compreende é a sua irmã mais nova, a que o apoia ainda é a sua mãe (excelente Ana Padrão). A diferença, sim ou não, é que mais do que uma história de amor trata-se de uma história de violência e de inconformismo. Simão amou, perdeu-se e morreu amando? Ou, existe apenas o seu desregramento, a sua destruição, o seu suicídio narcisista? A submissão é uma ignomínia. A ignomínia é uma indignidade. O que pode levar às maiores atrocidades. Como perdermos a alma, o que não é tão pouco. É só tudo o que não podemos perder.

10/02/10

02/02/10

"Tystnaden"

Se não há escrita, para já, "Tystnaden".

29/01/10

sem restrições

Felizmente, e assim nos permite a liberdade de expressão, a nossa escrita transparece aquilo que somos, o que queremos mostrar, as nossas emoções, as nossas intenções. Sem oposição ao escrito no texto que antecede o presente. Obviamente. Porém, em conjunto, teremos de alterar a forma, a descrição, em como o blogue foi até aqui apresentado. Brevemente. A essência dos "contribuidores" não sofrerá quaisquer alterações. Mau seria. Depreendo que o convite foi aceite; prevejo que a discussão acontecerá. Fico feliz, a adrenalina faz parte da minha vida. Fico feliz, os debates sempre me agradaram.

Declaração de interesses

Tenho a profunda convicção, de uma forma que dispensa qualquer racionalidade (isto é, independente de qualquer construção ou opção moral ou ética), de que a escrita emotiva só é válida se a cada frase que se escreve pode transparecer uma qualquer emoção repetível, como um insight, por parte de quem lê. Aceitemos como pressuposto irrecusável que a criação que não permanece inédita é, por essência, um acto narcísico, dirigido à atenção de quem lê; paradoxalmente, impõe o nosso próprio pudor - ou seja, precisamente o mesmo narcisismo que nos impele a mostrar a terceiros aquilo que criamos - que nos abstenhamos de falar de nós. Perdoem-me, por isso, esta opção narcisíca: (in)confidências não é comigo.

Lá teremos de bipolarizar o leit-motiv deste blogue.

27/01/10

ano novo, blogue novo

Este blogue passará a ter, dentro em breve, a colaboração de uma outra pessoa. Nessa sequência, proceder-se-ão a ligeiras adaptações (nomeadamente, quanto ao título e à sua descrição) já que passará a ser partilhado e a linha editorial (penso eu de que) sofrerá modificações. Continuarei, da mesma forma, a revelar segredos transmitidos em confiança. A Ilustre pessoa convidada fará como entender. Aqui há liberdade de expressão. Não quero deixar de sublinhar que a pessoa em questão é/foi uma "blogueira" de excepção. Sê bem-vinda! Este blogue passa a ser (também) teu.