Acontece por diversas ocasiões queixas sobre a nossa própria vida, sobre o que foi a nossa vida no antigo, com todos os traumas, com todas as angústias, grandes ou pequenas, as que fomos acumulando na nossa alma. As alegrias são mais recordadas, ainda bem, a nossa memória faz uma boa selecção para aguentarmos esta vida que vai passando. Vamos abstraindo, porém, as vivências dos outros, muitas vezes bem piores do que as nossas, muito mais dolorosas, as verdadeiramente sofridas. Passados tantos anos, a lucidez de que a minha infância decorreu com tranquilidade e sem grandes (ou nenhuns) sobressaltos! Na minha infância eu fui feliz, entre o campo e a cidade, em viagens que na altura pareciam intermináveis e que hoje não demoram mais de trinta minutos. O cheiro a eucalipto, os banhos no rio, o convívio com os meus muito primos, tardes e tardes que adiavam o fim, o tempo a correr muito devagar, o calor apertado no Verão e o frio de rachar no Inverno (como me lembro das fortes labaredas das enormes fogueiras), os baloiços que nos levavam às alturas entre as árvores. Os meus avós, os meus tios, os meus primos, os meus amigos, todos à espera, sempre de braços mais do que abertos. A minha prima predilecta, tanta brincadeira, tanta saudade também. E tanta picardia, bem própria da idade. Lembras-te, miúda? A minha adolescência correu cheia de sobressaltos, passou devagar, senti-me revolto como o meu corpo em transformação. Chegaram os dezoitos anos e voltei a ser feliz. A amiga da minha prima predilecta deu o empurrão. Esperança, tantos projectos, o mundo todo por minha conta (e eu sentia-o assim, sentia-me o príncipe do mundo, o mundo à minha espera). As angústias, os pensamentos mais dolorosos, sempre presentes. Mas mais controlados, a força apoderara-se, a adolescência criou fortes reacções, enormes defesas, armas que ficaram até hoje. E os outros? Os outros à minha volta, o que se passaria com eles, na sua infância, na sua adolescência? Os outros, as pessoas minha geração, com outras vivências, com outros meios, aqueles que lutaram com reais dificuldades, com tantas provações. Eu não os via, confesso. Eu observava e não os queria ver, penitencio-me. Eu não tinha idade para os querer ver. Eu via mas não queria ver. Ele só via os iguais a ele. Ele, aquele, eu. E eu sei que me queixo, hoje, do passado, mas sei que supérfluo. Tão em vão. Há sempre os outros, os outros que amargaram, os que sobreviviam com dificuldades, os que cresceram com factos que nem por sonhos imaginava que pudessem acontecer. Eu recebi elogios, sempre. Queixei-me por não receber mais, mas sempre os recebi. Ajudaram tanto. Chorei porque me criticaram, mas era tudo tão ténue, tão natural, entre crianças, entre adolescentes. Até isso ajudou (e muito). Vejo isso agora. Há tantos que cresceram sem afectos. Os outros merecem o nosso olhar. Os outros merecem a nossa solidarização. Os outros, os mais desprotegidos, merecem ainda mais o nosso cuidado. A nossa cooperação, nunca o nosso desdém. Somos todos tão iguais. Orgulho e preconceito. Pesado. O preconceito é só uma forma de prejuízo para nós, nunca para os outros. O orgulho deve estender-se aos outros, muito mais do que a nós.
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