03/11/09

com aspas e sem aspas

Fico muito contente por tudo isto chegar ao fim. Talvez julguem que me derrubam de um só golpe, que deram um pontapé na minha coragem, que me aniquilaram ou qualquer coisa assim? Pelo contrário, elevaram-me, lisonjearam-me, passado tanto tempo deram-se uma gota de esperança. Não fui talhado para ser máquina de escrever e de fazer contas. Gosto bastante de escrever, gosto bastante de fazer contas, apraz-me conviver honradamente com quem me rodeia, sou zeloso e, desde que tal não me fira o coração, obedeço apaixonadamente. Também saberia submeter-me a certas leis, se tal fosse necessário, mas há já algum tempo que não me parece necessário. Hoje de manhã, quando cheguei atrasado, sentia-me apenas zangado e irritadiço, não me preocupei honrada e conscientemente, nem sequer ralhei comigo ou, quando muito, apenas me censurei por ser ainda o mesmo rapaz tolo e medroso que salta quando batem as oito horas, que entra em movimento como um relógio a que se dá corda e que continua o seu movimento enquanto a corda dura. Agradeço-lhe por revelar a energia necessária para me despedir e peço-lhe que pense acerca de mim o que bem lhe aprouver. O senhor é sem dúvida um grande homem, admirável e digno de estima, mas eu, bem vê, também gostaria de ser assim, e por essa razão é bom que o senhor me mande embora, e por essa razão foi uma bênção que a minha conduta de hoje fosse inadmissível , como é costume dizer. No seu estabelecimento, que anda na boca do mundo e onde tanta gente gostaria de trabalhar, está fora de causa que um homem ainda novo possa evoluir. Quanto ao privilégio de auferir um salário mensal fixo, a minha indiferença não podia ser maior. Aqui esmoreço, perco inteligência e coragem, torno-me burocrático. Talvez o surpreenda ouvir-me falar deste modo, mas reconhecerá que me limito a dizer a verdade. Aqui há um homem apenas: o senhor! Nunca lhe ocorreu que entre os seus pobres subordinados se encontram talvez um ou dois que sentem também o ímpeto de serem homens, homens que agem, que criam, que inspiram respeito? É para mim impossível ver algum encanto no facto de ficar à margem apenas para não granjear a fama de ser um rapaz insatisfeito e pouco empregável. Como é grande aqui a tentação do medo, e como é pequena a vontade de escapar a este temor lastimável. Que hoje eu tenha concretizado esta quase impossibilidade é uma circunstância que louvo em mim, digam os outros o que disserem. O senhor director barrica-se aqui, ninguém o vê, ninguém sabe quem dá as ordens, na verdade também ninguém obedece, limitam-se a cumprir os seus hábitos moles e rombos e é assim que fazem o que têm a fazer. Que armadilha para gente nova que tende ao conforto e à preguiça. Aqui não se pede nada às muitas forças que em princípio animam o espírito de um homem novo, nem se exige nada que pudesse levar um homem a distinguir-se. Nem coragem nem espírito, nem lealdade nem zelo, nem ímpeto criativo nem vontade de trabalhar nos ajudam aqui a chegar mais longe, pelo contrário, é até estritamente proibido dar provas de força e energia. Claro que, com este lento, arrastado, seco e lastimável sistema de trabalho, isso teria de ser proibido. Despeço-me de si, caro senhor, saio daqui para restabelecer a minha saúde através do trabalho, nem que seja para cavar terra ou para carregar sacas de carvão às costas. Gosto de qualquer trabalho, à excepção daqueles que não empregam todas as forças disponíveis.


Robert Walser, Os Irmãos Tanner, pp. 29-30.
Robert Walser nasceu em Biel, na Suiça, em 1878.
Foi encontrado morto, na neve, nos campos que circundavam o sanatório de Herisau onde estava internado (“Estou aqui, não para escrever, mas para ser louco”), no dia 25 de Dezembro de 1956.
Robert Walser é um dos escritores que maior influência exerceu sobre Franz Kafka, Hermann Hesse ou Robert Musil.

As palavras aqui trancritas foram publicadas no ano de 1907. Há 102 anos!

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