07/09/09

Saraband



Ao ler uma entrevista de Woody Allen esta semana na Revista Única, quando ele refere que “falta glória na minha vida” e acrescenta que nunca fez filmes como Ingmar Bergman, apeteceu-me ver "Saraband", guardado há dois ou três anos nos filmes que compro e que ainda não vi. E fi-lo, ontem à tarde, num domingo à tarde, perfeito para ver um filme como este, estrutura perfeita, desespero, suavidade e densidade, simplicidade e complexidade, tudo em completa união, tudo o que eu precisava de ver. O momento certo. O dia certo. O filme mais-do-que-perfeito. "Um concerto para uma orquestra sinfónica, com quatro solistas", os quatro magníficos actores do filme e Ingmar Bergman. Ingmar Bergman é um realizador não passível de classificação. É um espírito não susceptível de rótulos. É um dos melhores do mundo. Como diz Liv Ullmann: "filmes e pessoas não envelhecem da mesma maneira." E se Ingmar Bergman morreu os filmes não morreram, não envelhecem, são "Morangos Silvestres" ao alcance de tantos e de tão poucos. "Saraband" (2003) será uma "espécie" de continuação de "Cenas da Vida Conjugal" (1973). O filme inicia-se com a personagem de Liv Ullmann a ordenar fotografias e é ela que desencadeia a narração ao decidir, trinta anos depois de ausência, visitar o seu velho ex-marido, que vive numa casa isolada, longínqua, com uma belíssima vista, rodeado de livros, música e filosofia. Ao chegar, depara-se com os problemas daquele velho, do filho do velho que também já é velho, e da jovem e bela neta do velho que não quer ser velha tão nova que ainda é. As personagens estão à beira do abismo, o velho já é muito velho, o filho do velho pode morrer se a sua filha avançar com a sua vida, a filha não sabe o que fazer. Há ainda presente a fotografia da falecida mulher, mãe e nora, ausente mas tão presente e tão amada pelos três. Há, também, a filha doente e internada num hospital psiquátrico de Liv Ullmann (Marianne) e Erland Josephson (Johan). Os rostos, as bocas, os olhos, as expressões das personagens, tudo é filmado com uma simplicidade e complexidade surpreendentes. Belíssimos primeiros planos, belíssimas aproximações da câmara aos rostos das personagens. A música, o silêncio, a expiação de todos os deles nossos pecados. Liv Ullmann mantêm-se o mais neutra possível no meio de tantos conflitos interiores, de tanta angústia, de tanto sofrimento, ao mesmo tempo no meio de tanta pureza no meio do ódio que as outras personagens sentem umas pelas outras. O pai pelo filho. O filho pelo pai. A filha pelo pai. São tantos os andamentos, os compassos, que ficamos trémulos, ocos, vazios, como se a angustia fosse toda sair das nossas entranhas. Como nas personagens. O despojamento total quando Erland Josephson surge no quarto de Liv Ullmann, despe-se, pede-lhe para se despir, e ambos, nus, deitam-se na cama. O silêncio. A angústia extrema. Ingmar Bergman filma a essência humana de forma profunda, acho que como ninguém. Captamos a alma das personagens e sentimo-nos como elas. Sim, bem mais Bergman do que Almodóvar. Sim, bem mais cinema do que teatro. Enfim, perante uma obra destas ficamos sempre dilacerados, tristes, mas tão visceralmente preenchidos. É o bastante. O tão bastante que nos deixa engrandecidos.

Entretanto leio “Filhos de Domingo”. Ingmar Bergman a escrever sobre ele próprio, recuando aos seus oito anos, na relação conflituosa que manteve com o pai e toda a sua envolvente familiar. Ainda, quero ver/rever filmes de Ingmar Bergman. Já os tenho, pelo menos doze bem à mão.

Saraband, 2003

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