10/10/10

"Antes um final angustiado do que uma vida de angústia”. Foi Ahmad que, ao dizer isto, involuntariamente revelou a Elly o exacto sentido do seu futuro, para ela sem alternativas num “establishment” que secundariza e estigmatiza as mulheres. Em termos lineares, “Darbareye Elly” (em português dará qualquer coisa como “À procura de Elly”) é a história de um grupo de amigos que passa um fim de semana numa casa junto ao mar. Todos eles e todos os seus hábitos são banais e em cada pormenor revelam as dimensões afectivas, sociais e humanistas típicas de “gente a sério” : não fossem os “hijab” das mulheres e o aspecto decrépito da casa de férias e poderíamos estar a contemplar um quadro banal de alguns europeus em férias. E mais alguns detalhes, revelados subtilmente ao longo do filme, como a agressão de Amir à sua mulher Sapideh, em estado de desespero por não saber o que ela sabe e quanto sabe sobre o desaparecimento de Elly: o momento em que os modelos morais islâmicos falam mais alto do que a razão através dos estados de alma. O guião é magnífico: o mistério revela-se a conta-gotas e tanto nos confunde nas pistas como nos põe a adivinhar sobre o que de facto aconteceu, até que percebemos que só uma hipótese é possível: a liberdade. Tudo relevado sem facilidades e sem maniqueísmos. Para coroar, o filme tem uma outra vantagem apreciável: é um excelente “espanta-preconceitos” para quem olha o Irão do “alto da Europa. “Tudo isto estava escrito. Ninguém tem culpa.”. Urso de Prata no Festival de Berlim. Um must-see.

08/10/10

Lola

Depois de "Kinatay" e do espectáculo de horror a que ali assisti, ouvi dizer que "Lola", de Brillante Mendoza, era uma espécie de redenção do cineasta ao seu filme anterior, com os filipinos e com o público em geral. Pois para também a mim me redimir ("Kinatay" é mesmo terrível e eu gostei) vi ontem "Lola”. Não há sangue, não há esventramento, não há um espectáculo sanguinário como no anterior. Mas há ainda maior tristeza, muita água (parece que nos vamos afogar), sofrimentos e desilusões incomensuráveis. Não me senti redimido. Não me senti aliviado. Senti uma profunda angustia. Não sei se algum dia quero ir a Manila. Acho mesmo que não (curioso, parece que já conheço aquelas ruas …). De qualquer forma, percebi que Brillante Mendoza é de uma sensibilidade superior. E isso é sempre tão raro.

06/10/10

Kinatay

“Kinatay” significa carnificina em filipino e será um esventramento literal e uma lição das trevas, culminando na violação colectiva e no massacre. É este o tema do filme com esse nome, “Kinatay, Brillante Mendoza, 2009, acabado de sair em DVD. Preparem-se, é um filme para maiores de dezoito anos e uns dezoito anos muito bem constituídos, organizados e estruturados. Caso contrário, é o caos, é caso para não aguentar o “murro no estômago”.
Podia começar por dizer-se, como se lê algures no filme, que uma vez perdida a integridade é para sempre. Acredito que nem sempre, mas só porque acredito na redenção. Acredito que poderá nunca acontecer pois há lugares onde isso poderá não ser possível. E neste lugar - onde acontecem estas coisas - parece que isso não existe.
A personagem principal, Peping, vinte anos, acabado de casar, com um filho de sete meses, aceita uma oferta de trabalho para ganhar algum dinheiro no próprio dia do seu casamento, na madrugada que se segue a esse dia, e vai assistir a uma verdadeira tortura, a uma matança, a um esquartejamento, e vai mostra-nos tudo isso a nós, espectadores, que o vamos acompanhar - só vemos aquilo que os olhos dele vêem.
Estamos em Manila, num nível de extrema pobreza, onde impera o caos, o lixo, o quotidiano filipino é-nos logo mostrado como nada de muito bonito mas onde, no inicio parece, se conseguirá viver com uma certa tranquilidade e harmonia. Um casal muito jovem, feliz, com um filho de sete meses, vai casar e tudo nos parece bem. Logo depois, entramos na noite de Manila, com Peping e um grupo de policias e passamos a assistir ao verdadeiro horror. Ao longo da noite, a missão em que Peping se vê envolvido consiste em dar uma grande lição a uma prostituta. E que lição! Ela vai ser espancada, violada, assassinada com facas, esventrada, mutilada e os seus pedaços vão ser espalhados pela cidade no meio do lixo, do caos, sem que ninguém se espante muito com esse facto (alguém diz, impávido e sereno, quando descobre a cabeça da mulher: “não se percebe, nos últimos tempos só encontramos pedaços de corpos pela cidade”).
E aqui não há integridade, não há redenção, há um desfilar de actos bárbaros, sem dó nem piedade, uma frieza implacável. A excepção é a personagem principal, Peping, que não recusa a tal oferta de trabalho para ganhar algum dinheiro. Parece que ele, também ele, não se irá salvar. Ele próprio, irá ser como o grupo com quem passou aquela noite. Para ele a salvação não vai chegar, parece. Ou a chegar será de acordo com aquelas regras.
Tudo é irremediavelmente mau quando se vê este filme. É como alguém nos dissesse (neste caso, o realizador) : o mundo é mau, o mundo é muito mau, e por ser tão mau olhem para isto, vejam bem isto! Será que foi isto que quis dizer Brillante Mendoza, com este “Kinatay”, melhor realizador em Cannes 2009 ? A mim parece-me que sim. Só não sei se isso é mau ou se às vezes é bom ver que existem coisas realmente más.

“Quero que os espectadores sintam o horror dentro da cabeça do meu personagem. Quero que o sigam de perto, que observem e pensem, e se sintam realmente perturbados.”
Brillante Mendoza