25/03/10
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23/03/10
silêncio
Joana estava tranquilamente a fazer os seus deveres rotineiros caseiros. Assim que acaba as suas tarefas, sente a sua alma tão limpa e ordenada como a sua casa. Sente uma felicidade interior tão grande que não consegue conter e, à medida que vai percorrendo e contemplando solitariamente a sua casa, o Silêncio vai-se apoderando das coisas, embelezando-as e dignificando-as. Tudo à sua volta desperta ordem, alegria e encanto e, à medida que ela admira os objectos que a rodeiam, vai absorvendo todos esses sentimentos positivos unindo-os num só: a felicidade. É esta felicidade que a liga às coisas, que faz delas uma parte de si, que constitui uma ponte entre a sua alma e a alma das coisas. Esta ligação proporciona uma relação simbiótica entre a realidade e a imaginação de Joana, em que tudo beneficia e nada é desagradável ou destruidor. Foi durante toda esta interminável tranquilidade que Joana ouviu um grito vindo da rua. Era um grito que carregava consigo uma força destruidora imensa, que erradicava tudo aquilo que se lhe metia à frente, e que procurava ultrapassar os confins do Universo. Procurava alcançar alguém. Parecia que os gritos tinham um propósito, e que este nada mais poderia ser senão o de acordar alguém, quem quer que fosse. Os gritos repetiam-se sucessivamente, cada vez mais desoladores e caóticos. O mundo perfeito em que Joana se encontrava estava a ser demolido como um castelo de cartas; todo o Silêncio que outrora pairava sobre a sua alma tinha-se desvanecido e, com ele, também a sua felicidade interior e beleza exterior. O mundo agora parecia-lhe um agregado de matéria disforme, incaracterística, completamente desprovida de beleza e ordem. A mulher cessou, finalmente, de gritar. Um homem que se encontrava com ela pediu-lhe para se irem embora, e esta, que tinha acalmado, acabou por consentir.
16/03/10
"a realidade não é o que alguns apregoam que ela é"
Facebook é um website de conhecimento, de interacção e de, mais uma vez, nesta questão de redes sociais, um website narcísico.
Facebook é uma descoberta da personalidade dos nossos “amigos”. O que se vai descobrindo nas entrelinhas não é pouca coisa. O que vamos mostrando vai violando a nossa privacidade, repetidamente, por palavras, por comentários, por aquilo que vamos escolhendo pôr.
Facebook é uma forma de conhecimento, as notícias vão sendo transmitidas em directo, sempre presente a informação dos assuntos que nos importam, relativos às páginas que nós escolhemos.
Facebook é muitas vezes uma forma de idolatria, qual a pessoa que escolhemos, dos nossos “amigos”, para carregarmos no like, para agradarmos a essa pessoa - a melhor forma de sentir antipatia se não corresponder à verdade. A idolatria, a veneração, seja qual for a razão subjacente, causa asco.
Facebook permite reencontrar velhos conhecidos, permite trocar opiniões, permite diversão, permite aprendizagem. Na maioria das vezes os outros acham sempre mais do que os demais preocupando-se mais com a amostra do que com a verificação.
Facebook permite descobrir pessoas interessantes, desinteressantes, vaidosas, fúteis, arrogantes, simpáticas, autoritárias, banais, tudo como no dia-a-dia mas de uma forma virtual, por isso mais livre, sem sobriedade. Por esta forma, as pessoas mostram-se mais, ocultas que estão no seu teclado, numa imagem virtual aparentemente indecifrável.
Facebook é uma forma de bisbilhotice da vida alheia, de esbulho, há os que permanecem silenciosos a vasculhar os outros, há os intrometidos, os convenientes, os inconvenientes, há de tudo, como em todas as circunstâncias. Tal qual a ninfa Eco que falava demais, a que queria sempre dar a última palavra em qualquer conversa ou discussão.
Facebook é uma forma de divertimento, uma forma de contactar os outros, de interacção, de distracção e de comunicação virtual.
Facebook é uma forma de gueto, os solitários abrem-se ao mundo, os expansivos bombeiam opiniões, os emproados ensinam os outros, os racionais planeiam as palavras, os emotivos susceptibilizam-se e muitas vezes amuam.
Facebook é o actual big brother, real ou virtual, as pessoas sabem da nossa vida, nós sabemos da vida dos outros, riem-se de nós, simpatizam connosco, gostam de nós, opinam sobre nós, e nós fazemos o mesmo com os outros e tudo rodopia à volta e volta a rodopiar e assim sucessivamente. A forma é a mesma da real, o virtual permite-nos rir sem que nos vejam, rirem-se de nós sem que nos apercebamos, respeitamos, desrespeitamos, respeitam-nos, desrespeitam-nos, em sucessivos actos narcisistas.
Facebook é muitas vezes inveja. Às vezes um sentimento de aversão, outras um sentimento egocêntrico, a soberba, o querer ser maior e melhor que todos, não podendo suportar que outrem seja melhor.
Facebook é veracidade, autenticidade. Pomos o que queremos, o que gostamos, independentemente da reacção alheia, somos nós, os outros gostam ou não, é sempre assim afinal.
Facebook não é nada, ou é tudo, ou é muito pouca coisa, ou é aquilo que queremos que seja, não é aquilo que os outros querem de nós, somos só nós, mais nada. Como a Matrix: "se o contrário de real é irreal, então qual é o contrário de virtual? "
E tudo começa pelo título, por Platão.
"O que é Matrix? Controle. A Matrix é um mundo de sonhos gerado por computador... feito para nos controlar..." (revelação feita por Morpheus a Neo)
10/03/10
a superficialidade dos grandes espíritos
Por isso, também se poderia ver nessa ligação às grandes coisas uma lei de sobrevivência da matéria espiritual, lei essa que parece ter uma validade bastante universal. Os discursos de pessoas em posições de destaque, que agem em mundos de grandeza, são em geral mais vazios de conteúdo do que os nossos. Os pensamentos demasiado próximos de objectos especialmente elevados mostram-se geralmente muito limitados sem o apoio desse privilégio. As causas que nos são mais caras - a nação, a paz, a humanidade, a virtude e outras igualmente estimáveis - arrastam consigo a mais medíocre flora intelectual. Esse seria um mundo às avessas. Mas se admitirmos que o tratamento de um tema pode ser tanto mais insignificante quanto mais significativo esse tema for, então estamos num mundo perfeitamente em ordem.
Robert Musil, in 'O Homem sem Qualidades'