30/05/08

brando ou excessivo ou ambos

Às vezes somos demasiado brandos. Outras, demasiado excessivos. Parece óbvio, é o óbvio. O meio-termo parece sempre o melhor, o mais equilibrado. Nem sempre é possível, principalmente quando estamos sujeitos a lidar com pessoas que não nos transmitem quase nada. De uma forma ou de outra, brando ou excessivo, não consigo tolerar subserviência. De uma forma ou de outra, brando ou excessivo, não consigo tolerar os que apelam a tudo para conseguir o quase nada. Explico-me, por mais que me esforce não entendo os inenarráveis esforços vãos para alcançar o que não é atingível, ou por atingir tão pequenas coisas. Falo dos bajuladores, dos que lisonjeiam em permanência para alcançar o que pretendem. Não me choca a bajulação inicial. O choque é assistir a uma atitude reiterada e permanente dos que a fazem e que não entendem, ou até entendem mas continuam por aquele caminho para alcançar um determinado resultado. São tantas as curvas, as contra curvas, os acidentes de percurso, que a viagem não terá fim (ou se o tiver não poderá ser um fim feliz, com a chegada ao destino certo). Eu não as quero perto de mim. Amanhã faço anos. E, junto de mim, as pessoas de quem eu gosto e que gostam de mim.

25/05/08

o meu jugo é suave

Os insondáveis desígnios de Deus. Esta é a oração, frequente, melhor, a principal justificação para a forte conduta repressiva, sempre em nome de Deus, da Igreja. Ao rever passados tantos anos o filme "Manhã Submersa" (Lauro António, 1980 – adaptação do romance homónimo de Vergílio Ferreira) surpreendi-me pelo que foi a minha própria educação católica. Embora não num seminário, como no filme, e a tão relativa pouca distância, a educação católica e os princípios morais que me deram a conhecer, tinha eu idade aproximada da personagem central do filme, são idênticas às que os Senhores Eclesiásticos nos transmitiam na Igreja, nos campos de férias, na catequese, nos dias em que passei por aquela altura na paróquia. Lembro-me bem do padre, do Sr. Padre, e dos fortes princípios morais que procurava transmitir, incutir nos nossos pensamentos, nos nossos actos e nas nossas omissões (confesso que sem sucesso - nunca acreditei nele). Lembro-me bem de um episódio, após mais um campo de férias, em que o Sr. Padre nos juntou para uma purgação conjunta do que tinha acontecido naquele último campo. Um a um todos foram afirmando o que achavam, chegada a minha vez referi que o campo serviu só para uma coisa: para dar uns beijos, estavam todos ali para isso, a redenção dos nossos pecados passava por isso, por encontrar a rapariga certa para o beijo certo, para os bailes de garagem seguintes e para pouco mais. Claro, o Sr. Padre não gostou, paciência, ele próprio daria uns beijos com uma senhora que lhe tombava aos pés e que logo lhe levantava as saias (nas famigeradas caminhadas e retiros espirituais). O filme "Manhã Submersa" é um filme triste, muito triste. E belo, muito belo. É uma obra poderosa, que remonta à nossa infância, à infância dos homens da minha geração, do nosso país, a uma época de repressão, de fortes desigualdades sociais, de pobreza, de austeridade, principalmente para quem teve, como eu, uma forte vivência na província. Lembro-me bem de quando chegava era recebido como um estranho, tudo porque era do Porto, de uma “grande metrópole”. Lembro-me bem das minhas tias, todas solteiras, que me tratavam com tal honra que era chamado pelos outros como o reizinho, o menino rei, o menino (bom, eu era, na altura, filho único, neto único, sobrinho único; confesso, fui mimado, por isso o sou ainda). E a Igreja sempre presente. Sempre a repressão por tudo que era a descoberta de uma vida feliz. O alcande para a felicidade apregoada pela Igreja passava pela obediência, pela asfixia dos sentimentos, pelo desapego que nos incutiam a ter os nossos próprios desejos, pela renúncia a uma existência alegre, tudo em nome de Deus, para o caminho de uma vida sem pecado. Haja paciência, nunca a tive, cedo desisti dessa vida dedicada a Deus. Não de Deus, esse continua presente. Como dizia Jesus: “O meu jugo é suave”. E é desse jugo que eu gosto, em que eu acredito.

23/05/08

Cannes ou Chelas ?

Manoel de Oliveira acabou de celebrar 100 anos de vida. Manoel de Oliveira acabou de receber a Palma de Ouro Honorária em Cannes. Merece aplausos, os meus aplausos, os aplausos de todos, uma estridente salva de palmas para ele. O seu génio, a sua alma de criador, conquistou-me há já vários anos, desde que vi o filme "Aniki-Bóbó" (1942), há já tanto tempo. Desde essa altura, era eu muito novo, até hoje, ainda não sou assim tão velho, nunca mais deixei de o acompanhar. E, em cada filme subsequente, a lucidez, a inspiração e o talento aumentam. "Amor de Perdição" (1978), "Vale Abraão" (1993) e "Party" (1996) são os meus favoritos. Mas os outros também. Mais palmas. Várias palmas, a Palma de Cannes e as que o nosso país esquece.


Alguém ouviu falar do filme "Call Girl" (António-Pedro Vasconcelos, 2007) ou da Soraia Chaves? Bom, alguém sabe, ou viu, o filme "Belle Toujours" (Manoel de Oliveira, 2006), ou já ouviu falar dos seus brilhantes actores Michel Piccoli e Bulle Ogier? Ou, ainda, o filme "Belle de Jour" (Luís Bunuel, 1967) e dos actores Michel Piccoli e Catherine Deneuve? Claro que sim. Ou não. Ou provavelmente talvez. Mas quem ganhou a “palma de ouro” no nosso país foi mesmo o "Call Girl" e a Soraia Chaves. O nosso país é extraordinário! Não sei porquê mas acho a Soraia Chaves mesmo parecida com a Catherine Deneuve. Muito mais com a Bulle Ogier. E, também não sei, mas "Call Girl" e "Belle Toujours" também se assemelham. Não é de prostituição que ambos falam? Ah não, de prostituição era o outro, o "Belle de Jour"?! Está assim explicado porque é que ambos os filmes eram candidatos a uma “palma de ouro” no nosso país. Está também explicado o prémio atribuído: a prostituição de que se fala no vencedor
é muito mais actual, muito mais moderna, muito mais vibrante. Pois, estamos mais em Chelas do que em Cannes. Mas também ambas começam por C. Qual a diferença?

20/05/08

lobos e cordeiros

Ainda sobre o fumo, os salpicões, os chouriços, o fumeiro, e outras contradições relativas à possibilidade ou impossibilidade de fumar, somos actualmente tratados, nós, os fumadores, como os mais reles parasitas. Voltei a fumar, sim, voltei a pecar, mas exijo respeito, assim como quando deixei de fumar respeitava os outros. Abomino poderes absolutos e perseguições fascistas. As fogueiras para existirem têm de ser ateadas, só se queima quem chegar perto do fogo. Ou estaremos, repito, na Inquisição? Eu nunca tive medo de fogueiras, muito menos de lobos que vestem a pele de cordeiros! Bom, como no texto que escrevi em véspera de Natal, que deixo agora aqui, parece que vem a propósito.
Tenho um amigo que escreve. Aliás, tenho mais do que um, mas falo deste que se segue. Às vezes não o leio porque escreve sobre futebol e outras merdas que eu não aprecio por aí além. Outra, quando não escreve sobre essas coisas que eu não aprecio, é bastante corrosivo e eu gosto. E leio. E gosto porque ele é muito fodido, bastante fodido até. Mas não só por isso. Não se devem dizer obscenidades na véspera de Natal mas que se foda, apetece-me, apeteceu-lhe a ele também. Bom, continuando, desta vez escreveu sobre o fumo, cigarros, restauração, hotelaria, a nova ordenação sobre o tabaco e a puta da nova PIDE actual chamada ASAE. E eu fartei-me de rir. Eu já fui fumador, aliás não fumo faz mais de dois meses e meio mas sei que continuo fumador. A qualquer momento pode apetecer-me fumar e fumarei. E fumarei nos restaurantes, nos hotéis, nas reles tascas, nos aeroportos, onde bem me apetecer. E quero que a puta da polícia de que falei se foda. O que vale é que eu aprendi a resistir ao cigarro. Estava bem fodido com as putas das coimas. E para os que fumam, para os que querem fumar, que fumem, que fumem a quantidade de cigarros que quiserem. Aliás, como deixei de fumar, continuando eu fumador, por que merda criticaria eu os que fumam? Fumem, o vosso fumo não me incomoda! Fumem onde quiserem, até em minha casa. Se estão em minha casa é porque são meus amigos e, por isso, não os vou pôr na varanda ou na porta da entrada para fumarem. Foda-se, abomino fundamentalistas.

18/05/08

separação dos poderes

A perseguição feroz aos fumadores, toda o despropósito legislativo sobre o tabaco, sobre os fumantes, sobre a afixação de dísticos relativos ao fumo, sobre a determinação dos locais fumáveis, ou defumáveis, como os presuntos, os salpicões ou os chouriços, dá vontade de pôr o legislador no fumeiro das suas próprias incongruências, numa fogueira com muitas labaredas, muito bem ateada. Assim mesmo, a chamuscar, no fumeiro, para arejar o seu instinto primário de querer condenar os pecadores, os culpados do crime mais hediondo, não fumes, cumpre, não és preso mas és condenado numa coima em quantia que nunca serás capaz de pagar. Estamos outra vez na Inquisão, a Pide voltou a atacar, a liberdade parece coarctada a todos os níveis. A desproporção é de tal ordem que são condenados em coima num montante nunca inferior a € 30 000,00 aqueles que não afixarem em estabelecimento de bebidas dístico onde se refira a proibição de venda de produtos de tabaco a menores de 18 anos. Tudo em defesa de tomar as necessárias e adequadas medidas no sentido de informarem os seus clientes das obrigações impostas pelas normas que estabeleçam algumas limitações ao uso do tabaco, de forma a minimizar os riscos e os malefícios inerentes aquela prática na saúde dos cidadãos. Um mero dístico, ora foda-se. Isto não está bem, não está nada bem, parece-me absolutamente persecutório, desproporcional, desnecessário, abandonar os medonhos pecadores à sua própria impossibilidade de redenção: não vou expiar os meus pecados, não posso, não tenho o silício, nem o chicote, à mão para me poder auto flagelar. Os tribunais ainda não se pronunciaram, acho, pelo menos que eu tenha conhecimento. Mas vão-se pronunciar, até aos limites, até esgotar todas as possibilidades de recurso sobre o assunto. O trânsito em julgado vai demorar. Por esta não me vou calar, não vou parar de argumentar, vou pôr os tribunais a farejar, a pensar que o poder judicial ainda poderá decidir face aos poderes executivo e legislativo. A separação dos poderes ainda existe? Eu já não sei nada. Com a Inquisição e a Pide presentes, não sei. Será que chamarei o Senhor Engenheiro, aquele que não sabemos se o é, o fumador arrependido maior deste país, aquele que perante o delito confessa, arrepende-se e promete a sua própria redenção? Se pudesse chamaria, o seu depoimento parece-me importante para a descoberta da verdade. E esse é o objectivo de qualquer audiência de julgamento. Parecia-me mesmo bem para a boa decisão da causa. E daí…, o seu depoimento poderia não se mostrar muito credível quanto à forma como relataria os factos. Melhor não.

representação

A imagem é uma coisa extraordinária, ambivalente, perigosa, ambígua. A imagem persegue-nos, seduz-nos, repugna-nos, deixa-nos em estado de alerta, sempre. Ou nos queixamos porque gostamos, de nós, dos outros, ou porque não gostamos, ou porque exigem de nós aquilo que acham que devemos ser e não aquilo que realmente somos, quase nunca a autenticidade. A imagem sempre perseguiu os meus caminhos, acho que os de todos, a vários níveis, não só os visíveis. A imagem condiciona a nossa conduta, a nossa interacção com os outros, por mais que cogitemos que não, por mais que depreciemos essa questão. Parece absurdo associar uma imagem, a física, a uma conduta, à personalidade, à inteligência, ou seja ao que for, para aquela determinada pessoa. O facto é que temos tendência para o fazer, para julgar, de acordo com uma determinada aparência, sem mais. Seria incapaz de vender a minha imagem, boa ou má, é minha, não é negociável, não pode ser objecto de qualquer negociação. Contudo, essa mesma imagem inegociável é posta à prova todos os dias, condiciona o trabalho, a vida, parece vendável a todo o tempo. Apesar de tudo, não devo, não quero, entre singulares e plurais, vender uma coisa que não tem preço. Eu, tu, todos, somos nós, agradamos a nós, se aos outros melhor, caso contrário – não! Obviamente, quem vende a imagem não é objecto, para mim, de qualquer preconceito, de qualquer juízo de valor adverso, faz quem quer, porque quer, nada a ver com isso. Eu não; pelo menos, de forma óbvia, de forma directa – estou aqui, quero que vejam, sou eu, elejam. Não. Não, também não sou assim tão ingénuo que não perceba que há quem o faça, porque tem de o fazer, porque determinadas opções de vida obrigam a tal. Nada contra, mas nada para mim, só para esses. E as opções são como as razões. Optamos porque queremos; opinamos porque achamos. Assim, vendemos o que queremos, não negociamos o que para nós é inegociável.

...

Agora ..., só novas publicações! Fartei-me de escrever no outro local. Foram tantos os textos, tantas as inconfidências, melhor, muito melhor, às vezes estar mais calado. Seleccionei os que me pareceram menos pessoais, mesmo assim ... Como sou destemperado, aqui se calhar vai ser igual. A ver vou !

solo so che niente so


Dos não humildes, dos que acham que são e sabem sempre mais que os outros.

Dos inúteis, dos que nada fazem por aprender e que se limitam pretender ensinar os outros.

Dos ignorantes, dos que debitam paleio boçal.

Dos imbecis, dos que não lutam por nada que mereça a pena.

Dos palermas, dos e daqueles que transmitem energias nulas.

Dos cobardes, dos que pretendem apenas atraiçoar terceiros e sempre os mais fracos.

Dos fracos, de inteligência e de carácter.

Dos feios, de sentimentos, de gestos e de emoções.

Dos belos, dos e daqueles que transmitem só aragem.
Eu ...
Solo So Che Niente So

numa sala de aula, ou numa sala de tribunal

A pedido de uma querida amiga volto ao meu estilo mais comercial, ou seja, uns chorrilhos de palavrões, sim, porque esta merda sempre pode render uns cobres e, quem sabe, um cabrão de um jornalista qualquer se lembre de me convidar para escrever num jornal, sei que seria num tipo Vinte e Quatro Tiros, ou na Bola, eu que não percebo uma piça de futebol. Bom, continuando, hoje, numa selecta sala de um tribunal deste país, um ilustre colega tentou, literalmente, foder-me, usando argumentos básicos, do género, parece que estamos numa sala de aula, está um telemóvel a tocar. O telemóvel, que por acaso era o meu, eu que nunca me esqueço de desligar aquela merda, hoje esqueci-me e aquela merda não se calava, nem eu atinava em desligá-lo! Entretanto, e perante já o riso do senhor juiz, divertido com a situação, valha-nos essa porra, o telemóvel caiu ao chão, sempre a tocar, havia um cabrão que não queria arrepiar caminho, insistia, insistia, insistia, mal ele sabia a puta de confusão que estava a causar. Finalmente, lá consegui desligar aquela choldra, pedindo desculpas pelo sucedido, levantei-me do sitio, quis entregar o telemóvel ao meu ilustre colega, sempre com a perspectiva de tentar que ele pegasse naquela merda para eu o poder empurar, para lhe chamar velho e outras merdas, tudo para poder repetir numa sala de audiências aquilo que se passou numa sala de aulas. Não tive sucesso, porém, tudo voltou à normalidade, e o vídeo que entretanto estava a ser preparado para o You Tube foi para o caralho que o fodeu. Lá se foderam as audiências, lá me fodi com este texto. Já agora, não há quem dê uns estaladões naquela adolescente demente da sala de aula em causa? Foda-se, aquela merda foi mesmo duma imbecilidade atroz.

Martha Freud

Martha Freud silenciou a sua existência perante os outros, na sua época, no seu próprio mundo, perante os filhos, muito mais pelo marido Sigmund Freud. Aparentemente, pelo que sai do romance de Nicolle Rossen, e outras fontes, Marta Freud renunciou a quase tudo, a si mesma, às suas convicções, às suas crenças religiosas (cresceu numa família judaica), à sua capacidade intelectual (seria uma mulher culta e com vários interesses), ao debate com o próprio marido sobre o que ele ia descobrindo – quando aquele mesmo revolucionava a definição de natureza humana (nascia a psicanálise). Porque é que o marido a entorpeceu para tamanho segundo plano quando poderia ter sido ela a sua melhor interlocutora na sua genialidade, em tudo o que ele viria a revolucionar? Porque é que Sigmund Freud a esqueceu, estando ela sempre presente? E porque é que a própria Martha Freud se deixou levar naquele silêncio, naquela submissão, naquele mutismo? E seria Sigmund Freud assim, como é revelado no romance, obsessivo, frio, distante, de um extremo egoísmo? Como seria a sua própria sexualidade? A abstinência como método contraceptivo após o nascimento do seu sexto filho? Só? E a atracção que Sigmund Freud devotou a alguns dos seus discípulos seria só intelectual, de partilha do seu próprio saber com eles (nunca o contrário)? O que resultou de tudo isto, em Martha Freud, pelo romance, foi a de um profundo alívio após a morte de Sigmund Freud e de um emergir nela de sentimentos de profundo ódio pelo que foi a sua vida e pelo próprio marido. O que foi um noivado apaixonante e cheio de cartas de amor (por parte de Sigmund Freud) revelou-se num casamento de fachada e numa vida pessoal inexistente – para ambos.

Salvador da Bahia

Salvador da Bahia. Bahia. Brasil. O lugar perfeito para encontrar a harmonia, a paz, o bem-estar. Encontrei tudo isso e muito mais. E tudo com fortes tempestades tropicais, também apropriadas, pelo estado de espírito, pela vinda logo de seguida de um Sol abrasador, soalheiro, a entranhar nos nossos corpos e a perfurar todas aquelas nuvens. Salvador é aquele lugar distante que os portugueses encontraram há já vários séculos e onde tudo parece encontrar-se como naquela época. Aliás, seguramente, tudo mais degradado, tudo mais caótico, mas tudo mais poético. Compreendo que por terem nascido ali, Jorge Amado, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, João Ubaldo Ribeiro e mais, as suas obras, as suas músicas, as suas vozes, estejam pejadas de emoção. Compreendo que Vinicius de Moraes, um dos maiores poetas da língua portuguesa, tenha escolhido a Praia de Itapuã, lhe tenha dedicado uma música, e que tenha passado muitos dos seus dias naquele lugar. Gostei das cores, do clima, do povo, das ruas, do Pelourinho, da Baía de Todos os Santos, do Sol, das praias, até das nuvens, das chuvas e da tempestade. Como nos disse o Seu Nascimento, motorista de profissão, nosso motorista naqueles dias, a Ivete Sangalo poderia viver onde quisesse mas mantêm-se ali, em Salvador, encarando de frente a Ilha de Itaparica. O que se sente ao percorrer aquelas ruas, observando aquele movimento, é inexplicável, é autêntica poesia. A pobreza é bela, não estranhamente, não choca os nossos sentidos, dá-nos vontade de dar. Há alegria, há humor, mais uma vez poesia. A poesia sempre presente. Corre sangue português nas veias daquela gente e isso é motivo de grande júbilo, de grande alegria, de enorme orgulho. Corre sangue português, africano, índio, e tantos mais, nas veias daquele povo, daquela gente. Como no título do livro de João Ubaldo Ribeiro só podemos gritar: Viva o Povo Brasileiro. Voltarei, sempre, àquele lugar.

"fuck you"

Há momentos em que apetece rever filmes que nos deram, dão, grande prazer, oferecê-los aos amigos, escrever sobre eles, pensar sobre eles, aprender com eles. E é isso que tenho andado a fazer, desta vez, com o filme de Spike Lee, traduzido para português, A Última Hora. É um filme arrepiante. É um filme sobre o que cada um de nós tem de melhor, e de pior, porque é que um país, no caso os Estados Unidos da América, uma cidade, no caso Nova Iorque, uma personagem, no caso um “yuppie” e o seu cão, de repente, se encontram à deriva, de repente, caminham na lentidão, de repente, sofrem, de repente, encontram-se completamente desiludidos. As ruas estão quase desertas, há pouca gente, errática, a caminhar para o nada. A cidade caiu no abatimento. As personagens estão frustradas, a música é a de uma missa, triste, a de uma despedida. Estamos perante um estado de abatimento geral. Há duas cenas fulcrais, absolutamente vibrantes: a cena do espelho, com um "fuck you" avassalador, dirigido pela personagem a tudo, a todos, a si próprio como pessoa, principalmente a si próprio (Edward Norton/ Monty Clift: a força e a fragilidade. Combinação perfeita entre o actor – brilhante, e o nome da personagem - vibrante) e a cena em que Spike Lee coloca duas personagens na janela de um arranha céus com vista sobre o Ground Zero, com vista directamente sobre o vazio daquele local, das personagens, questionando aquelas a razão de ainda ali estarem, afirmando, porém, que sempre ali continuarão e que sempre ali vão permanecer. Nada é mais forte do que a nossa própria força. Só nos deixamos atingir se quisermos. Nada alheio a nós nos pode destruir. Só nós. O vazio pode existir mas a força permanece, maior, nem que não se saiba bem para onde e por onde caminhar. No fim do filme permanece o vazio mas há sempre um caminho a seguir e isso depende apenas da nossa vontade, da nossa força.
The 25 Th Hour, Spike Lee, 2003

e agora para desanuviar, pérolas domésticas

Aventuras domésticas sem qualquer preconceito, apenas risíveis, ou não. Apetecíveis, pelo menos para mim, para contar, para memorizar, pena o esquecimento dos diversos detalhes sucessivos e em catadupa ao longo destes, bom, já doze anos. A última aventura acabou segunda-feira, com a décima primeira, em média, portanto, de uma empregada doméstica por ano. Só esta última é que foi despedida, todas as anteriores se foram despedindo. E não é para rir, despediram-se todas pelos motivos mais díspares, mais inacreditáveis, nunca porque tivessem razões, antes, arranjavam-nas sempre. Com excepção desta última que foi despedida segunda-feira. Mas já volto aqui! Antes, dois ou três, ou os que me for lembrando, pormenores ao longo destes doze anos. Um dos primeiros acontecimentos, uma das primeiras empregadas, afirmou, quando entrou adentro da minha própria casa, que só a cozinha dela era maior do que “esta sala”. Assim, sem mais, apenas porque lhe apeteceu dizer. A sala em questão não era pequena, se fosse ainda se compreendia a observação. Mas não era. Logo a seguir, quando questionada sobre o que sabia fazer, respondeu, de imediato, eu, o que sei fazer, muito pouca coisa. E então, observando os electrodomésticos da cozinha, afirmou: estas coisas modernas nem lhes toco, não os sei limpar, ainda se estragam! Isto é o micro-ondas? Questionou. Eu não o sei limpar, nem nunca o vou limpar. Apesar do pesar, ficou um a dois meses. Inexperiência nossa, ao contratá-la. Não é que não soubesse fazer nada, não queria era nada fazer. Enfim, por ela própria desistiu. Afirmou que aquilo não era bem para ela, que se ia casar e que não precisava muito de trabalhar. Explicação razoável (?!). Encontrei-a, eu, um dia destes, passados estes doze anos, na casa da vizinha do lado, a trabalhar, como empregada doméstica. Quando me viu, porque já estamos a falar numa outra casa, num outro prédio, sorriu e baixou a cabeça. E agora baixa sempre a cabeça quando me vê. Não sei bem porquê. Esqueci-me de um pequeno detalhe: vinha trabalhar num Audi qualquer coisa, não que não o pudesse ter, claro, apenas preconceito meu. Já que a primeira correu mal, por falta de experiência, pensávamos nós, decidiu-se pela contratação de uma verdadeira profissional, daquelas com o verdadeiro saber da coisa: que soubessem limpar, passar e cozinhar e com experiência anterior. Bom, não foi logo de imediato. A primeira “experiente” decidiu no próprio dia que as horas propostas não eram as suficientes, vá lá, boa razão, queria trabalhar mais para ganhar mais. Nada mais razoável. Mas não, acrescentou ela, não era só por isso, não era sobretudo por isso, era porque a casa não era suficientemente espaçosa para ela poder mexer-se como estava acostumada em casas anteriores. Depois da sala pequena, esta razão pareceu-me, no mínimo, estranha. A casa era uma casa, com cento e alguns metros quadrados, para três pessoas. Caricato, porque depois de eu mudar de casa a escusa é porque a casa era demasiado grande e dava muito trabalho. Nem vale a pena comentar. Enfim! Veio outra, logo a seguir, com referências, com muito saber, até cozinhar fazia muito bem. Sol de pouca dura. Começou em Outubro e terminou no final do ano. Razão: de 24 de Dezembro a 2 de Janeiro, sem avisar, desapareceu. No dia 3, quando retomou o serviço, questionada sobre o motivo da sua ausência não anunciada, gritou: “eu nunca trabalhei em nenhum sítio entre o Natal e o Ano Novo, era o que mais faltava”. Disse, ainda: “e olhe, o meu marido vem aqui falar consigo, quem me devia perguntar o que quer que fosse deveria ser a doutora, não o doutor”. Pasmo. Fiquei sem resposta e jurei nunca mais dizer nada. E cumpri, até agora. Foi-se embora, de imediato, sem qualquer justificação. De seguida, apareceu uma pequena ladra. Começou a desaparecer a comida toda. Quando questionada sobre um colar desaparecido afirmou não saber dele. No dia seguinte o colar estava colocado debaixo de uma mesa, referiu ela, descoberto por ela. Curiosamente, a mesa em questão era colada ao chão, impossível de estar lá o que quer que seja, a não ser pó. Nesse mesmo dia quis ir embora. Depois de muitas aventuras lá apareceu a melhor de todas e a que se manteve ao longo de seis anos. Era calma, calada, e ia fazendo todo o trabalho em condições mais ou menos normais. Faltava muito, mal nos respondia, mas nem isso importava, estava farto de aturar sucessivas empregadas, sucessivos despedimentos, sucessivos desvarios. Aconteceram duas coisas absolutamente extraordinárias com esta eleita a melhor. Isso além do facto de me chamar Santo António, uma vez que não sabia bem, dizia ela, se eu era Doutor ou Engenheiro. O Santo pareceu-lhe bem. Nem adianta explicar que eu tentei dizer-lhe que não valia a pena tratamento nenhum, nem eu fazia questão. Senhor parecia-me bem, ela achou melhor Santo. A primeira coisa extraordinária foi motivada por uma falta. Enviou uma mensagem multimédia (não para mim) a referir que estava doente, conforme se poderia comprovar pela fotografia que acompanhava a mensagem. Tratava-se da fotografia da dita, deitada, quase nua, na sua cama, com as suas belas coxas em primeiro plano e com um ar muito sofrido e de quem estava realmente doente. Essa fotografia está guardada. Trata-se de uma verdadeira pérola. Acho que só aquele que é casado com uma Lady qualquer é que se lembraria de tal. A segunda coisa extraordinária foi o seu abandono, a sua retirada de cena. Após seis anos de trabalho, sem quaisquer explicações, deixou um bilhete, dirigido ao Santo António (estava mesmo assim escrito) e Senhora Doutora, a referir que tinha muita pena, que gostava muito de nós todos, mas que a mãe estava doente e que tinha de a acompanhar. Ainda tentamos contactá-la, nem que fosse para lhe pagar, mas nunca atendeu as chamadas. Não veio receber e nunca mais deu notícias. Chegou a altura da décima primeira, aquela que ficou pelo início desta história. Era um portento, um verdadeiro vulcão. Não que o peso interesse mas andava pelos cem quilos. Começou em Junho de 2007 e foi embora agora. Esta foi despedida. A única despedida. Após sucessivos episódios, de alguma importância mas, vá lá, sempre ultrapassáveis, decidiu dar à conversa com os porteiros, com as empregadas dos vizinhos do lado, de baixo, da frente, de trás, enfim, com quem lhe aparecesse pela frente e a quisesse ouvir. Até com a sogra de um ilustre senhor público (bom, esta desta sogra fica para nunca mais lhe dirigir palavra, de eu para ela). O tema, suponho que entre outros: o Santo António. Convém acrescentar que eu tenho esta tendência, de estar e ficar envolvido nas situações mais estranhas e mais caricatas sem perceber muito bem como e porquê (não é, Busto?). Convém também acrescentar que, enquanto permanecem nas limpezas, ninguém está em casa, limpam, passam, cozinham, mexem, sem que ninguém possa ver, sem que ninguém as possa chatear. Eu, pelo menos, nem respiro perto delas com receio de que qualquer suspiro as leve a ficar melindradas. Isto desde a conversa que tive com a que me ameaçou com o marido. O Santo António, a esta última, não lhe parecia um Santo, como a outra, mas antes um, como dizer, demónio, um demónio apetecível, para ela e segundo ela. Disse-o, ao Santo e afirmou-o à mulher do Santo. Resultado: quando despedida, não se calou e pediu desculpa pelos pensamentos pecaminosos que lhe iam na cabeça. Que se ia confessar, que se ia penitenciar e que não voltaria a fazer. Que se quisessem ela até continuaria. Eu não tenho palavras para descrever mais sobre este último episódio. De tudo isto resulta que desde terça-feira a empregada sou eu, somos nós. Até ver. Estamos a fazer entrevistas. Desta vez queremos curriculum vitae.

o tempo que resta

Viver cada momento como se fosse o último. É assim o filme, é assim como vemos o filme e é assim que a personagem Romain (Melvil Poupaud) encara a sua situação depois de saber que vai morrer, em breve. E quer despedir-se, em silêncio, das pessoas, daquilo que o rodeia. Escolhe uma única pessoa para apresentar a sua condição, sua avó (Jeanne Moreau), também ela próxima, pela idade, pelo pouco tempo que resta a ambos.
E o que fazemos quando nos resta assim pouco tempo? Para outras coisas, para nos despedirmos de uma vida inteira, de afectos, de objectos, de pessoas, para nos encararmos, agora, sós, para descobrirmos, finalmente, o que queremos e o que já não queremos mais? Como no filme, a única possibilidade é descobrir uma forma de nos descobrirmos, não de nos redimirmos de quaisquer maldades cometidas, de quaisquer erros anteriores, mas antes avançarmos para não cairmos nos mesmos equívocos, principalmente para não procurarmos mais atalhos mas trilhos bem firmes. Melvil Poupaud e Jeanne Moreau, os dois actores, são extraordinários, quando estão os dois, em casa da avó, a questionarem-se, pelo porquê de ali estarem e não com outras pessoas, a revelarem as suas mais profundas inquietações: o pouco tempo que resta, a ambos, mais a ele. E choram, ambos, por terem percebido que são iguais, que partilham do mesmo, que estão ambos na mesma posição, e que são e estão mais próximos do que com outro alguém qualquer ou do que alguma vez já estiveram. Por isso os dois, ali, e por isso choram, um perante o outro. E, por isso, atingem aqui ambos o seu estado mais puro - abrindo tudo e não escondendo nada.
Le Temps qui reste, François Ozon, 2005

ondas de paixão

Escrever sobre um filme como Breaking The Waves é uma tarefa árdua, difícil, perturbadora e muito arriscada. São mesmo várias ondas a quebrar rochedos, a bater forte, no nosso peito, na nossa alma. É, antes de mais, um filme de uma beleza extraordinária e a todos os níveis: a realização (Lars Von Trier gosta de nos dar socos valentes), a música, os actores, a arrebatadora personagem Bess (Emily Watson, excepcional), também o marido Jan, a cunhada, tudo é perfeito, tudo é empolgante, tudo é demolidor. Rever este filme, numa altura destas, da minha vida, onde o Amor é apresentado com uma total entrega, sem qualquer resistência, sem qualquer preconceito, sem pedir ou exigir nada em troca, com total abnegação, até confundir tudo isso com um ser não normal, é verdadeiramente perturbador, comovente e belo. Quem é capaz de agir assim por Amor? Será a personagem “estúpida”, como lhe chamam, ou apenas uma pessoa “boa”, como refere o médico de Bess quando o questionam do que ela padece? Será isto real, irreal, existir uma pessoa assim, ou será ela apenas uma anormal, uma imbecil? Não me quero prolongar mais sobre o filme, sobre a emoção de ver um filme como este, sobre o Amor visto sob este ponto de vista, visto até ao limite, até à morte, contra tudo, contra todos. Como estamos num diário, quero ainda referir que quando as coisas são demasiados irreais, porque demasiado fortes, ou por outras razões, a vontade é fugir, a vontade é a de não continuar. E só se continua com uma certeza, e com uma certeza que tem de ser absoluta: as vontades têm de ser absolutamente afins, rigorosamente iguais. Se não o forem pode existir desistência. Existiria pelo menos uma renúncia: a minha. A personagem do filme não fugiu, não renunciou, morreu ...
Breaking The Waves, Lars Von Trier, 1996

dor

Causar dor a outra pessoa, de uma forma frontal, ou só pelo nosso porte, ou por quaisquer outros motivos, é algo insuportável, vil, abjecto, ignóbil, medonho, infame, e outros mais sinónimos, que só pode, só deve, causar a quem dirige essa dor uma maior dor a si próprio. É intolerável pensar que alguém sofre porque lhe dirigimos a dor que sentimos intimamente em nós. Fazer sofrer, de qualquer forma, além de intolerável para o outro, é-o ainda mais para nós, também, pelo egoísmo, pelo egocentrismo, intrínseco a cada um (não querermos dor por o outro estar a sentir dor é uma forma de purgar a nossa própria dor). Mas não deve ser por isso, pelo egoísmo e egocentrismo, que devemos sentir dor por causar dor, mas sim pela grandeza de pensar que causar dor nos torna almas menores, seres desmedidamente inferiores, corpos de punição e não de redenção. E nós não somos só corpos, somos muito mais pessoas.

este rapaz é o meu rapaz

Está a crescer. Muito. E depressa. Ele acha que não, que o tempo passa devagar e que nunca mais é crescido. Onde e quando já senti como ele? Há tantos anos, passaram a voar. Agora é ele, que cresce e dana-se por não ser mais rápido. Já dorme fora de casa, com os amigos, em altas diversões. Os amigos vêm cá, dormem cá, e ele não quer afectos perto deles. Onde e quando já senti como ele? Aquele rapaz é o meu rapaz. Orgulho-me dele, gosto dele, amo-o profundamente. Por ele sou capaz de tudo. Todos os pais, ou quase, sentem o mesmo. Eu não queria que ele fosse de outra forma, queria-o assim, como é, com todas as suas enormes qualidades e com todos os seus defeitos. Aliás, eu até queria ter sido como ele. A avó bem diz: este rapaz é bem mais fácil do que tu. Eu sei. E ainda bem. Ele é mais bonito do que eu, mais inteligente do que eu, vai ser mais alto do que eu, é mais sensato do que eu, mais cordato, mais fácil, mais tudo. A outra avó bem diz: ele reúne o que a mãe e o pai têm de melhor. Este rapaz é o meu rapaz. Este rapaz é o que o meu pai queria quando eu era como ele. Por isso, ainda melhor, este rapaz é o meu rapaz e o rapaz do meu próprio pai. Pai: eu não era assim mas ofereci-te alguém como tu querias. Este rapaz também é o teu rapaz. As pazes estão feitas, nada mais há a perdoar. Este rapaz é o nosso rapaz, o rapaz dos pais, dos avós, dos tantos tios. Este texto é para o nosso rapaz. Rapaz: és o que todos queríamos que fosses.

a melodia mais perfeita

A experiência de amar suscita perturbações, nenhuma como amar alguém acima do nosso próprio ser. Sem que entrevejamos, estremecemos mais do devemos e isso torna-se quase doloroso. Não se torna quase doloroso, é mesmo pungente, absoluto, incomensurável, eterno, sem limites, pleno. E por essa pessoa, por esse pedaço de nós, que afinal não é nosso, morremos, por amor, sem explicações, sem qualquer desagravo. É a melhor, a mais perfeita, união entre dois seres. Como alguém já escreveu, nas nossas entranhas, quando pensamos nesse nosso amor, ouvimos violinos, ouvimos a melodia mais perfeita a apaziguar a nossa alma: sempre.

17/05/08

casamento

Os ritos são importantes, marcam, permanecem, não se esvanecem com o tempo. O casamento, a cerimónia, a música, os convidados, pais, irmãos, família, amigos, ficam na nossa memória para sempre. Aquele dia é o dia dos amados, um dia feliz, quando sabemos que é com aquela pessoa que queremos estar ali, que aquela pessoa nos escolheu a nós para estar ali, e que não há ninguém que um dia a possa substituir, e que também nunca essa pessoa nos irá substituir, naquelas circunstâncias, noutro momento, a experiência posterior diz-nos que aquele momento não se vai mais repetir. Naquele dia, escolhemos sobretudo os nossos amigos para testemunharem o nosso ritual. Foi uma cerimónia religiosa, numa capela pequena, numa casa pequena, com torrentes de chuva, com os amigos emocionados, com palmas no início, meio e fim, com os Stones a iniciarem e a terminarem a liturgia, com um padre amigo e especial, também ele muito emocionado, com um filho no ventre, com um anjo no Céu que eu sei esteve presente na cerimónia, com os nossos pais a apadrinharem o matrimónio. A emoção esteve sempre presente, lágrimas, sobretudo foi um dia em que o amor permaneceu no ar, em todos, senti-o, sentimo-lo, disseram-nos, comoveram-se, todos estavam felizes. Chegamos depois dos convidados, juntos, de mãos dadas e fomos recebidos com uma estridente salva de palmas. Estivemos juntos, noite afora, com os nossos melhores amigos, com muita conversa, com muito riso, com muita diversão, com muitos copos, com muita alegria. Dormimos juntos, os nossos amigos dormiram lá. Acordamos juntos, tomamos o pequeno-almoço juntos, com os nossos amigos. Partimos, depois, sozinhos, numa viagem que eu pensava bem planeada. Não sabia, naqueles momentos, que era o início de uma partida para uma longa jornada, para uma longa viagem. Uma viagem impossível de delinear, muito longa, que dura até hoje e onde todos os dias temos de traçar um novo destino.

fogo que arde sem se ver

Estou embriagado. Sim, outra vez. Eu sou dos copos, os das emoções, a agitação invade todos os dias a minha vida, graças a Deus. Se calhar também faço por isso. Ando sempre a mil, as coisas acontecem, nunca estagnam, nunca são iguais. A rotina não faz parte da minha vida, se fizesse acho que já tinha morrido. E se não morresse mudava de vida, emigrava, fazia por mudar, não pararia. Se não conseguisse, aí morria! Há pessoas que acompanham esta viagem, que fazem parte dela, que ajudam a que a minha vida seja irrequieta, que seja sempre uma descoberta, que seja sempre uma aventura. Há o B., esse é sempre o meu bálsamo, o meu conforto, o meu grande amor. Há a R., sempre presente, entranhada como nunca, na minha cabeça, no meu espírito, na minha existência. Estou sempre para ela, com ela, por ela, em qualquer circunstância, em qualquer ocasião. Há os amigos, que eu não prescindo, que estão comigo, que gostam de mim, eu deles, sem estar e estando sempre. Há, ainda, um fogo que arde sem se ver, em permanente ebulição, como no soneto.



Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?


Luís de Camões

fire walk with me

Estou embriagado. De prazer, de agitação, de verdadeiro tesão. Gosto de uma boa demanda, de um julgamento, de tudo ao rubro, de tudo a vibrar e eu no meio do círculo de fogo. Acho que sou um gajo de sorte, entre os azares, pois faço aquilo que verdadeiramente gosto. Entro de peito, sem medo, com medo, com vários soldados à espera, com várias armas apontadas, nunca sei de onde virá o tiro, eu igual, com a espingarda bem apontada na mira da parte contrária. Qual será o próximo tiro, ricochete, ou não, quando darei o próximo, no segundo a seguir, naquele mesmo instante? Nunca se sabe o que se vai passar no momento seguinte, avanço e recuo, preparar a guerra é preciso mas a surpresa é sempre bem mais forte. Isto é um julgamento, uma visão do. Aquilo é o que eu gosto verdadeiramente de fazer. Tesão inacreditável. Orgasmo total. Quando passa apetece logo outro! O que vale é que são vários seguidos.

16/05/08

coração selvagem

O mundo tem um coração selvagem e é um lugar tão estranho. Lula (Laura Dern) ama Sailor (Nicolas Cage) e este amor é um dos mais bonitos, dos mais cáusticos, dos mais selvagens, alguma vez filmado em cinema, realizado por David Lynch, em Wild at Heart. Sailor, no fim do filme, quando encontra a Fada Boa, diz que não pode regressar a Lula pois tem o coração selvagem, é um ladrão, um homicida, e por isso não a pode amar. A Fada Boa diz-lhe que não, para não ter medo do amor, para não fugir do amor. Sailor corre então para Lula e canta-lhe Love me Tender – a canção que prometeu cantar à mulher que escolhesse para si. O mundo é um lugar estranho e tem um coração selvagem. A mãe de Lula (Diane Ladd), a Fada Má, impede, a todo o custo, o amor entre Lula e Sailor. E persegue-os, maltrata-os, por todos os motivos, também porque é má, porque tem um coração selvagem, porque fez coisas más, e acha que Sailor sabe, numa luta do mal contra o mal. O conto de fadas acaba bem, acaba com o Love me Tender. Este é um dos mais belos filmes de amor de todos os tempos. O amor entre Lula e Sailor é extraordinário, não é preciso ter medo do amor, em qualquer circunstância e por nenhum motivo. Como é belo cantar o Love me Tender a alguém que se escolhe e que nos escolhe também. Eu sou, e sempre serei, como o Sailor. Não gosto de pessoas que não tenham coragem de assumir aquilo que sentem e que se refugiam nas aparências. O mundo tem um coração selvagem e é mesmo um lugar estranho.
Wild at Heart, David Lynch, 1990

13/05/08

promessas perigosas

David Cronenberg nunca nos dá respostas nos seus filmes, antes, faz perguntas, levanta questões e faz-nos pensar. Os filmes de David Cronenberg são daqueles que não conseguimos esquecer duas horas depois, muito até muitos anos depois. Ficam nas nossas cabeças, incomodam-nos, entranham-se e nunca mais nos abandonam. Esse é também o caso do seu último filme, Eastern Promises, fabuloso, violento, onde nunca nada é o que parece e onde nunca as personagens são aquilo que inicialmente aparentam ser. É uma espécie de continuação do filme anterior, A History of Violence, ainda com mais cenas de violência, ainda mais explícitas, ainda mais duras, ainda mais gratuitas, ou talvez só não. Quem é o mau, o bom, quem é deveras violento e o que é, ou poderá ser, uma história de amor (histórias de amor que nunca chegam a acontecer - como dois comboios que se cruzam em linhas diferentes e logo se afastam pois cada um tem se seguir o seu próprio destino)? Há vários actores excepcionais, escusem os outros, mas neste filme há três que admiro especialmente e que quero e preciso destacar: Naomi Watts é absolutamente credível na sua personagem de parteira, num hospital de Londres, uma inglesa com ascendência russa e enraizada nos hábitos locais. Separou-se de um negro (“não é bom a mistura de raças” – diz-lhe o tio) e cruza-se agora com a máfia russa, conhecendo-os, lentamente, ao longo do filme e apercebendo-se que está a penetrar em águas muito turvas. Viggo Mortensen é como as tatuagens que usa no seu corpo: visceral, profundo, entranhado na máfia russa e, surpresa, ou não, embatendo precisamente do lado contrário. Vincent Cassel é o filho do Rei, o filho da máfia russa, repelente, brutal, terrível, a besta. Nas últimas sequências (e porque nunca nada é o que parece) transforma-se num ser angelical e incapaz de cometer a bestialidade que o Rei lhe pediu (quando já havia cometido tantas outras). Afinal é um homem sensível e não assim tão perverso. As personagens de Naomi Watts e Vincent Cassel atraídas pelo mesmo homem: Viggo Mortensen. Enigmático triângulo! Nunca nada é o que parece, as respostas ficam no ar, o amor é uma coisa muito estranha, as pessoas nunca são só boas, ou só más, ou só violentas, ou só bondosas. Ou serão? Seremos o quê, neste mundo de violência? Serão os outros quem, neste mundo de aparência? Há filmes que nunca nos deixam indiferentes. Há cineastas que nos comovem sempre. David Cronenberg é daquelas criaturas que não se cansam de surpreender. Genial. Aplausos.


Eastern Promises, David Cronenberg, 2007

12/05/08

eu não quero ser o Ken

Anteontem foi dia de festa. Foi o aniversário de uma querida amiga, daquelas que fazem parte das minhas entranhas. Quem se der ao trabalho de ler estes textos, ou mesmo eu, que os escrevo, dou-me conta que as minhas entranhas estão bem preenchidas. Deve ser porque sou um homem bom, ou, um bom homem, dependendo da perspectiva. Antes de mais, quarenta anos exactos é uma data a festejar, parece-me, com roupa de gala, num lugar a condizer, champanhe e tudo o demais associado. E aconteceu aquilo tudo, a aniversariante chegou deslumbrante, com um vestido com um grande decote, porém conveniente, de saltos altos, daqueles mesmo altos, ela que já é alta, ultrapassava o metro e oitenta, estava mais bonita do que nunca. Veio acompanhada pela mãe, com um amigo alfacinha, com um senhor de idade e a sua filha recém sozinha. Vieram depois os amigos e os outros interessados, já explico. Finalmente, apareceram duas barbies, as amigas extravagantes como antes a aniversariante explicou para não surpresa dos outros. Sem sucesso, o pasmo apoderou-se de todos quando as barbies entraram em cena. Como não sou rapaz de grandes inibições acho que é mesmo directo ao ponto que terei de seguir em frente. Assim será. A aniversariante e a mãe estavam muito graciosas, a mãe estava elegante, a J. estava linda. Eu e a R., descontraídos, cúmplices como nos velhos tempos (já estava com saudade). Velhas conhecidas da faculdade, a A. e o marido, a T., discretos, atentos, simpáticos. Uma amiga da J., professora de literatura, respectivo marido, interessantes, vivos, saíram cedo, tinham uma viagem de trezentos quilómetros ainda. Depois, depois são os outros interessados, como já disse, como disse a aniversariante num texto que fez questão de ler antes do champanhe. Há ainda um, não referido no texto da aniversariante, nem ainda aqui, mas que foi o ignorado. E, claro, as barbies. As barbies que gostavam mesmo de serem chamadas de barbies e intitulavam-se como tal. Eram duas, as últimas a chegar, as que causaram maior impacto, pelos piores motivos. Uma ruiva e a outra loira, ambas platinadas. Absolutamente fabulosas, de mau gosto. Absolutamente gastas, tristes, perdidas, o resultado do consumo imediato, onde tudo é fútil, nada construído com valia, não por culpa delas mas resultado desta agremiação de aparência. Óbvios, os outros interessados mantiveram-se perto das barbies, o ignorado ao lado da aniversariante. Óbvio, também, o quarentão casado abandonado cujo brilho nos olhos denunciava que tudo que mexesse resultaria em efervescência. Óbvio, ainda, a junção dos supostamente equilibrados em lugares próximos, em conversas sobre família. Ainda, a filha do mais velho convidado, também ela na luta dos seus quarenta anos recém sozinha, tentando aproximar os interessados, mais o ignorado, da aniversariante quando o que ela pretendia era a aproximação de algum desinteressado por ela própria. Não havia nenhum, contudo, para ela, infortúnio dela Ora bem, no meio de tudo isto, festejavam-se os quarenta anos da aniversariante e os demais convidados estavam quase todos perdidos nos seus próprios quarenta anos. Ou sozinhos, ou interessados, ou ignorados, ou infelizes, ou estranhamente contentes no seu descontentamento. O pior ou o melhor de tudo isto é que ainda, perante os factos descritos, afirmaram-me quão ridículo é pretender ser o Ken. O aniversário foi bonito para a aniversariante, importa algo mais? A aniversariante estava feliz, importa algo mais?


- Does Barbie come with Ken?
- No. She fucks with Ken, but she only comes with Action Man.